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O BARCO INVISÍVEL
MISSÃO SOBREVIVER - Vol. IV
CAPÍTULO XLVI
SEGUNDA CHANCE
O ex-padre-pastor Carlos está deitado e ainda não totalmente acordado. Ele ouve a voz de uma criança brincando perto dali. Os sons são confusos! Risadas e mais risadas, curtas e longas, se misturam com uma voz de terror, grave, diabólica e ameaçadora. Aos poucos ele mexe a cabeça e abre os olhos. Confuso, percebe estar deitado numa rede dentro de um estranho ambiente com um telhado feito com muitas folhas. Gotas de uma fraca chuva caem dali e pingam em seu corpo. O falso religioso não entende como foi parar neste lugar. Carlos olha de lado e vê uma bela e seminua índia que o fita diretamente. Séria, ela parece aguardar que ele volte a si. O ex-padre-pastor não resiste e faz um comentário:
- Onde estou? Deve ser o paraíso, porque você deve ser um anjo!
Inesperadamente uma pequena imagem holográfica se ergue do chão com a aparência de um fantasma sedento de sangue e que olha diretamente para Carlos, com seus olhos flamejantes. A coisa diz a ele com uma voz tenebrosa, grave e ameaçadora:
- Bem-vindo ao inferno, pecador!
O homem quase tem um ataque cardíaco! Carlos tenta se levantar rapidamente dali e ao fazer isso a rede gira de lado e ele cai no chão de terra de barriga para baixo. A pequena menina que estava ali perto, brincando, desliga a base plástica circular que tinha nas mãos e a figura do terrível fantasma se desliga. Ela se levanta e se aproxima da bela índia que observava Carlos enquanto dormia. Agora ele percebe que o que vira era apenas um brinquedo, mas que o deixou muito assustado e com o coração acelerado. Um forte índio, armado com uma pequena lança entra rápido no local e aponta sua arma de forma nervosa e com o rosto sério na direção de Carlos. A índia sorri levemente devido à queda ao chão daquele homem branco.
- Ei! Calma! O que está acontecendo aqui? Onde estou? Aliás, quem sou eu? (indaga o ex-clérigo ainda deitado no chão com uma das mãos à frente que quase clama por sua vida para não ser morto).
O forte índio abaixa sua lança, volta seu olhar para a bela índia e para a menina e com um sinal de cabeça ordena que ambas saiam dali. Elas o fazem sem discutir e nada dizer. Ficaram Carlos e o índio, sozinhos ali.
- Você... muitas... perguntas!
Carlos olha de lado, para o chão e de volta para o índio. Com um olhar perdido e na busca por encontrar explicações para o que está acontecendo, ele responde:
- Não sei quem sou e nem o que estou fazendo aqui! Não me lembro de nada. Deu um branco em minha mente!
- Você homem branco da cidade grande...! Cometeu crime...! Apagaram sua mente...! Fica aqui de agora em diante...! Ninguém mais quer você...!
- Cidade grande...? Crime...? Não me lembro de nada disso...!
- Todos dizer isso quando chegam...! Não adianta tentar... não lembrará...!
- Como viverei sem saber algo de meu passado?
- Melhor assim...! A maioria que vem aqui... como você... não comete mais crimes!
- É mesmo? (indaga Carlos se levantando lentamente do chão).
O índio aponta novamente sua lança contra ele. Carlos faz um gesto com a palma de sua mão aberta, indicando que ele não fará nada de mal.
- Que crime eu cometi?
- Não sei!
- Se tem tanto medo de mim, porque aceitou a minha presença aqui?
- Homem branco dá presentes...
- Entendi! E em troca disso, vocês cuidam de mim?
- Não! Você aprende pescar, caçar, trabalhar, plantar! Senão morrerá de fome!
- Legal! (declara Carlos levando uma das mãos à cabeça do lado direito). A minha cabeça dói muito!
- Homem branco retirou alma de seu corpo...!
- Telefone...! Lembro-me quando mandei instalar um chip há muito tempo...! Mas não me lembro de mais nada...! Onde é aqui?
- Floresta.
- Floresta?!?!
- Floresta!
- Certo! O que acontece com os homens brancos que voltam a cometer crimes na selva? Retornam à cidade?
O índio responde com um gesto, apontando o indicador para o próprio pescoço, arrastando o dedo do lado direito até o esquerdo, deixando claro que o pescoço do criminoso será cortado de fora-a-fora.
- Ahhh! Tá! Então esta é a minha segunda e última chance de continuar vivendo?
O índio nada responde e aponta a saída dali com sua lança.
- Quer que eu saia daqui?
- Vamos rezar.
- Vamos rezar agora?!?!
- Vamos rezar!
- Tá legal! Tem uma igreja por aqui? Um padre..., talvez?
- Vamos rezar!
- Tá! Vamos lá fora, então!
Carlos caminha para fora do local com o índio logo atrás! Agora ele percebe estar numa grande comunidade indígena. Devem ser centenas de índios! Aqui e ali ele vê outros homens e mulheres brancas, aparentemente já bem integrados ao local, usando poucas roupas, com o tom de pele bem moreno, por conta do excesso de sol, e diversas pinturas no rosto e no corpo. Ao lado ele vê uma capela onde diversos índios e brancos estão reunidos. Todos olhando na mesma direção para uma imagem de Jesus Cristo na cruz. O índio aponta para ele ficar junto dos outros, postando-se atrás dele por segurança. Carlos se posiciona ao lado de outro homem branco e fala baixinho com ele:
- Olá! Sou novo aqui e não me lembro como cheguei neste lugar estranho!
- Nenhum de nós se lembra! Vamos apenas tocando a vida!
- Acha isso suficiente?
- Não sei dizer! Se eu me lembrasse de alguma coisa de meu passado, talvez pudesse avaliar melhor outras possibilidades. A única coisa que sabemos é que todos os homens e mulheres brancas daqui cometeram algum crime na cidade grande.
- É...! Disso eu também já sei...! Alguém aqui já voltou a cometer crimes...?
- Semana passada um cara tentou forçar uma índia a fazer sexo com ele e o mataram. Outro tentou fugir daqui e nunca mais ouvimos falar dele novamente.
- Humm! Então não estamos livres neste lugar? Fomos condenados e nem sabemos o porquê!
- Estamos no meio do nada! Eu subi numa árvore outro dia e só vi floresta para todos os lados! Não há escapatória daqui! Não temos para onde ir! Temos que nos adaptar para continuar vivendo desta forma. Ao menos estamos vivos!
- Isso pode não ser o suficiente para mim!
- Vai se acostumar! Sabe rezar?
- Se sei... não estou me lembrando!
- Quem sabe você aprende e passa a ser um... coroinha desta... igreja!
- Coroinha? Prefiro ser padre a assistente!
- Impossível! Um padre vem nos visitar aqui uma vez por mês! O cargo dele não está disponível. Mas o de coroinha está! Ele sempre precisa que alguém carregue uma coisa prá cá, um coisa prá lá...!
- É só mais trabalho neste fim de mundo! Quero voltar para a cidade! Se é que vim de lá mesmo!
- Isso não será possível! Nenhum homem branco que vem para cá aceita levar um de nós de volta! Eles nos olham meio atravessado! Ninguém gosta de nós aqui! Nem os índios e nem os homens brancos que raramente aparecem aqui!
- Então isto não é uma segunda chance para nós! É um presídio! Estamos todos cumprindo pena aqui! Nos abandonaram no meio de uma floresta com selvagens que podem nos matar por qualquer motivo!
- Não! Se fizermos tudo direitinho, os índios passam a nos respeitar! Tratam-nos como iguais! Mas te aviso: leva um bom tempo para confiarem em nós. Sabem que somos cidadãos de segunda classe!
- É...! Parece que a minha pena será bem longa...!
- Pode apostar, meu amigo!
- Vocês já pensaram aqui em dominar estes índios para conseguirmos voltar para a civilização?
- Ninguém nos quer lá, meu chapa! Se voltarmos acho que não serão muito benevolentes conosco. Voltar, para nós, seria o nosso fim!
- Mas temos direito de saber quem éramos?
- Preste atenção no que está acontecendo! Mesmo sem me lembrar de meu passado de crimes, eu sei que não temos outra opção por aqui! Fomos marginalizados! E ponto final!
- Então é isso? Temos que nos conformar com tal coisa?
- É você quem sabe! O mundo já fez a opção por nós! Abandonaram-nos por aqui! Fim da história!
Carlos olha para todos os lados e percebe que seu passado não será relembrado, seu presente é apenas uma segunda chance de continuar vivendo e seu futuro será muito incerto neste lugar. Ele não sabe que crime cometeu, só sabe que a pena está além do que ele concorda em pagar. As portas da mata estão abertas para todos aqueles que quiserem tentar um caminho alternativo. Mas com certeza a floresta não será tão complacente com os que não estejam preparados para sobreviver neste lugar!
CAPÍTULO XLVI
SEGUNDA CHANCE